Olhares vagos dizem mais que qualquer palavra de desprezo

sábado, 29 de agosto de 2009

O Mentiroso

- Quando começaram suas crises?

- Foi a exatamente três anos atrás, quando ela me deixou.

- Mas você disse a pouco que tinha deixado-a.

- Eu menti doutor. Esse é um grande defeito meu. Foi por isso que ela se foi.

- E ela foi pra onde?

- Pra perto de Deus.

- Ela morreu?

- Não. Foi morar perto de uma Igreja.

- Sei... E qual foi sua primeira reação?

- Nenhuma doutor. Eu achei que fosse mentira dela.

- Mas que eu saiba mentir é um grande defeito seu não dela.

- Eu menti doutor. Pessoa mais sincera que eu, não há. Ela sim era uma grande mentirosa, por isso mesmo me deixou.

- E suas crises começaram a exatamente três anos atrás...

- Não doutor, você está mentindo. Eu não tenho crise alguma. Aliás, nunca tive.

- É mesmo? E como está o seu casamento?

- Vai indo, sabe? Mas minha esposa anda reclamando dos meus comportamentos.

- E como você anda se comportando?

- Não sei doutor. Acho que ando tendo umas crises.

- Quando começaram suas crises?

- Foi a exatamente três anos atrás, quando ela me deixou.

- Mas afinal, quem deixou você?

- Ninguém me deixou. Eu menti doutor.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O casamento de Euclides

"Se alguém tem algo contra o matrimônio, fale agora ou cale-se para sempre."

Chovia. As portas da Igreja estavam fechadas e as trovoadas pareciam engolir a cidadela. Janeth, de branco, mas com vestido simples. Seus olhos pequenos matavam qualquer sentimento que tentasse transparecer; seu nariz empinado parecia ter nojo do mundo; sua boca é lacrada. Nem palavras, nem beijos.

Sua pequena família, muito discreta, ocupava os primeiros bancos. Seu pai estava de cabeça baixa e sua mãe tentava disfarçar certa agonia. Euclides estava úmido. Pegou chuva a caminho do casamento. Enxugou o rosto na Sacristia e pronto, tudo resolvido. Ninguém ocupava os bancos reservados à sua família. Nem amigos.

Era um noivo até que atraente (mesmo úmido). Negros cabelos com pequenas ondas e sorriso reluzente. Beleza da idade. Olhar promíscuo e ar displicente. Não inspirava muita confiança. Usava um terno de cor, mas um pouco curto. Emprestado, sem dúvidas.

Silêncio na Igreja. "Eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva."

Os noivos se entreolharam. Janeth jogou o buquê nas mãos de sua irmã e abriu um guarda-chuva. Euclides olhou a aliança e sorriu. Abriu também um guarda-chuva e saíram os dois, lado a lado, sem trocar uma palavra. A família, atônita seguiu-os.

Abriram-se as portas da Igreja. Não se via palmo à frente do nariz. O cinza do cimento no chão misturava-se com o cinza do céu que desabava em forma d'água. A cruz que situava-se no centro do pátio (grande e imponente, diga-se de passagem), parecia uma sombra frágil no alto. Rajadas de vento balançavam os sinos que tocavam desordenadamente. Não era lá uma música para os ouvidos. Ao menos, cortava o silêncio.

Euclides deixava a água molhar seus cabelos. Ele tinha a mania, desde garoto, de achar que era o maestro do tempo. Chuva para as conquistas; sol para as más ações; garoa para aquelas épocas de dúvida. Pela regra, 28 de março era um dia de conquista.
Janeth parecia entediada. Olhava para o infinito sem muitas esperanças e suspirou. Era o início de um grande amor.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Reflexões de um momento onde a vida não vale mais a pena

Posso dizer com certeza e provar com testemunhas, que tive uma vida impecável. Dinheiro nunca me faltou, mulheres idem. Fiz alguns filhos, onde poucos me consideram. Bebi do melhor uísque, experimentei diversas fumaças e a natureza não me negou a beleza.Nada disso me trouxe a sanidade almejada, ou a interpretação correta das minhas atitudes, nem mesmo o meu reconhecimento como artista. No meu túmulo poderia escrever-se assim:

"Jaz aqui um homem"

E só. Nem poeta, nem músico, nem bom pai ou marido. Aprendi um pouco tarde demais que os frutos não se comem todos de uma vez. Deve-se saboreá-los aos poucos. Quando acaba, acabou. Sinceramente, nunca desejei verdadeiramente todos os presentes da vida, mas me guiei por eles e me desviei dos meus ideais.

Hoje não velho, porém morto.

Meus ideais nem eu mesmo sei quais eram. Parecia com algo como não me misturar aos pensamentos da massa, ou dos políticos. Não sei se foi bem isso o que fiz, ou sei e não me deixo recordar; nem expor o fato.
Se um dia desejei não ter nada de conhecido além dos pensamentos, resgato esse momento, neste momento.

Não se pode justificar ou culpar algo ou alguém pelas intempéries do seu destino. A sua cabeça pensa por você, mas infelizmente, não pensas por ela. E em determinadas horas, sinto-me como algo inanimado que agiu mecanicamente e não se lembra que agiu. Essa é a verdade do mundo. Todos vivem em piloto automático. Eu não fui diferente.

Paro agora, quando nada me resta fazer, a olhar pros livros que colecionei durante a vida. E neles me afogo novamente, quando na condição de homem, nem em corpo me vejo mais.

Fica a pergunta que pessoas como eu, se fazem em um ponto da vida: "De que serviu tudo?" Não vou responder porque assim não desejo. Apenas aqui me despeço. Com algo que lembra uma carta e se assemelha a uma crônica. Talvez, depois disso, meu jazigo traga algo parecido com:

"Jaz aqui um homem que se arrependeu"

Mesmo eu não tendo me arrependido. Eu apenas lamentei.