Olhares vagos dizem mais que qualquer palavra de desprezo

domingo, 28 de fevereiro de 2010

O EXCELENTE ESCRAVO FIEL

D. Leopoldina, viúva, dona de muitas terras, muitos negros e muitos filhos, ao folhear “A Província de São Paulo”, vê um anúncio muito atraente que tratava da venda de um crioulo novo e cheio de predicados. A preta Chica, já velha, não agüentava mais todo o peso do serviço doméstico.


O nome do crioulo novo – adquirido por D. Leopoldina – era José. Em verdade, era mulato; filho de uma negra com um homem branco desconhecido. Parecia muito aceado e tinha boa aparência. Era de poucas palavras e muito respeitador. Obedecia não só as ordens da viúva, mas também de todos os seus filhos; tanto os residentes na casa quanto os que iam de visita. Ao todo eram cinco: Maria da Graça, Maria do Socorro, Joaquim, João Matias e Leopoldo o caçula.

José trabalhava calado, obedecia calado e ouvia calado. Ouvia muito, pode-se observar. Conversas tolas na maioria do tempo e conversas bem interessantes de tempos em tempos, principalmente as que aconteciam entre João Matias e sua irmã mais velha Maria da Graça, quando esta vinha em visita à casa da mãe em companhia de seus dois pequenos. Conspiravam e planejavam; contra tudo e contra todos, especialmente contra a genitora. Pintavam-na insana e incapaz de administrar seu patrimônio, o que não era verdade, mas muito vantajoso para os dois. Os outros três não ficavam muito atrás, mas não era muito espertos, nem sutis.

O crioulo temia por D. Leopoldina, tão cercada de abutres. Decidiu usar as palavras que economizava todos os dias para alertá-la, mas seu coração de mãe cegava-a. Terminou em uma casa de saúde, sem nada nas mãos. Não tinha mais terras, não tinha mais negros, não tinha mais filhos, mas tinha José que lhe visitava e oferecia companhia, mesmo com poucas palavras. Era um excelente escravo. Um excelente escravo fiel.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Cidades Secas - Monteiro Lobato

Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para uma terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava com aperto de coração o depericimento visível de sua Itaoca.
- Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons - agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...
João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.
É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...
Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...
João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu.
- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
- Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.
- Mas, como? Agora que você está delegado?
- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus.
E sumiu.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Lá no bordel

Lá no bordel onde trabalho, sou a preferida.
Não faço exigências, não cobro carinho, nem tento subir na vida.
Não falo, não beijo, não peço nem um gole,
Só quero um cigarro na despedida.

Não quero mudar, mas não digo que sou feliz
Já tive sonhos, já fui menina
Virei mulher e agora uso roupas encardidas
Foi como Deus quis, me tornei uma simples meretriz

prévia

a marcha dos desvairados tomou as ruas
todos enfileirados, como um exército
cheios de tudo que não representa nada
prontos pra apagar a moral
e acender o carnaval